Entrevista: Jeanine Geraldo Javarez

     A partir de hoje, O Clube publicará entrevistas com o servidores do IFPR campus Pinhais. Os assuntos discutidos serão diversos, mas, de alguma maneira, falaremos sobre o tema que nos une: a leitura. 

    Temos a alegria de começar esta série de entrevistas com a professora Jeanine Geraldo Javarez, docente de Língua Portuguesa e Língua Inglesa e coordenadora do Clube de Leitura. Ela nos contou um pouco sobre como a leitura e a literatura ocuparam um importante espaço nas diferentes fases da sua vida. 

    Boa leitura!

Foto: Arquivo Pessoal

O Clube: Como foi sua formação como leitora? Lembra de ter tido incentivo em casa, na escola?

Jeanine: Minha casa sempre teve livros. Lembro de logo cedo, antes mesmo de aprender a ler, gostar de folhear revistas e jornais (algumas vezes de ponta cabeça, mas o que vale é a intenção, não é mesmo?). Aprendi a ler e escrever antes de entrar na escola. Minha mãe fazia aquelas letras pontilhadas e eu ia seguindo os pontinhos com a caneta ou com o lápis. Também havia uma estante antiga de madeira com vidros nas portas onde eram guardados os livros. Tínhamos aquelas coleções de enciclopédias – Larousse e Barsa, é claro – além de outros livros da editora Círculo, hoje infelizmente extinta, dos quais me lembro muito bem de duas séries: uma de volumes com capas coloridas, cada um com uma série de contos de fada, mitos e folclore do mundo todo. Foi ali que li as histórias “verdadeiras” da pequena sereia, da menina que pisou no pão (nunca façam isso, crianças!) e da pequena vendedora de fósforos. Na escola, o incentivo vinha das professoras que criaram uma espécie de competição. Na parede da classe, havia uma árvore de papel bem grande e para cada livro lido ganhávamos uma maçãzinha colada com nosso nome nos galhos da árvore. Ao final do ano letivo, quem tivesse mais maçãzinhas era considerado campeão de leitura. Provavelmente havia algum prêmio por isso, mas, por algum motivo, não consigo me lembrar. 


O Clube: Qual foi a primeira leitura marcante na sua vida? Como foi? 

JeanineO primeiro livro que li chamava-se “O balaio do gato”. Sempre tivemos bichos de estimação em casa, éramos “gateiros” de nascença, então lembro de ler e reler esse livro sobre o gato várias vezes, embora agora não me recorde da história. Em casa, também, minha mãe costumava ler para nós. E dois livros em especial nunca me saíram da memória, um deles, inclusive, figurou num conto que escrevi muito tempo depois chamado “O livrinho verde”. Esse livrinho encapado em plástico verde tinha vários contos de fadas e um deles era sobre três cabeças de ouro que apareciam num poço onde uma bela donzela ia buscar água. Não me pergunte o restante porque, provavelmente, o que me vem à mente é fruto da minha imaginação e não conteúdo do livro de verdade. 

    O outro chamava-se “Cazuza”. Era a leitura de juventude de minha mãe e eu adorava as histórias do menininho Cazuza que vi crescer nas páginas datilografadas daquele volume empoeirado. Cada capítulo contava algo em especial da vida do menino Cazuza. Meus preferidos eram o primeiro dia de escola, o sítio da tia Mocinha, a história do Patachoca um menino adoentado cuja morte marcou minha infância, e a história dos violeiros com suas batalhas em versos improvisados à volta de uma fogueira. O volume original que pertenceu à minha mãe se perdeu nas páginas da vida; por isso, fiz questão de, já adulta, adquirir outro num sebo. Não é o mesmo, mas guardo-o como se fosse. 

    Na adolescência a biblioteca era meu refúgio, assim como o é para muitos de nossos estudantes. Refugiei-me na leitura de clássicos como Ciranda de pedra e A disciplina do amor, ambos de Lygia Fagundes Telles, autora cujos romances se tornariam meu objeto de pesquisa na graduação e no mestrado. Mas também lia bestsellers, meus preferidos, é claro. Ainda não estava preparada para Guimarães Rosa, cuja leitura difícil me enfadava. Li com muito gosto a série Harry Potter, cujos livros uma amiga me emprestava, e sou fã até hoje. Eu entrava tanto na história que não ouvia nada ao meu redor. Isso acabou me causando problemas um dia. Eu era aluna do curso médio integrado em Gestão de Pequenas e Médias Empresas na UTFPR em Curitiba e as disciplinas técnicas me eram desinteressantes. Por isso, frequentemente, retirava da bolsa o livro emprestado e lia durante a aula mesmo. Um dia, durante uma aula de finanças, empreendedorismo ou qualquer coisa do gênero, o professor me chamou para que eu respondesse uma questão e eu não ouvi. Bem, digamos que ele me chamou várias vezes. Chegou a andar até mim (eu sentava no fundo) para que eu percebesse que ele dizia meu nome e eu, nada. Só despertei da leitura quando fui cutucada dolorosamente pela minha amiga – a dona dos livros do Harry Potter. Olhei para ela, que parecia querer rir da minha cara (não sem motivos, é claro) e só então percebi o professor à minha frente e a sala toda me olhando. Sabem a música quem me dera ser um peixe para em teu límpido aquário mergulhar...? Bom, naquele momento eu pensava: quem me dera ser um avestruz, para num fundo buraco eu me enfiar... Claro que, apesar da vergonha, não parei de ler durante as aulas de finanças, empreendedorismo ou qualquer coisa do gênero. Só me mantive mais atenta para que conseguisse ouvir meu nome quando fosse chamada. 


O Clube: Qual é o espaço da literatura na sua vida hoje? Tem preferências por gêneros? 

Jeanine: Posso dizer que a literatura é a minha vida todinha. Escolhi meu curso superior com base na minha paixão pelos livros e, devo dizer, jamais me arrependi. É claro que professores de português poetas que tocam violão têm, também, algo a ver com isso. No último ano do ensino médio, tive aula com um professor de cabelos cacheados que frequentava o submundo curitibano dos bares de poetas e escritores desafortunados. Ele tocava violão. E era poeta. Suas aulas eram, basicamente, literatura e produção de texto – tudo o que sempre gostei. Pois bem, numa de suas aulas ele levou o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, aquele autor cuja leitura difícil me enfadava. Mas havia algo de diferente nesse conto. Algo especial que se revelou durante a leitura que o professor poeta e tocador de violão de cabelos cacheados fez em voz alta. E foi aí que pensei: quero viver disso. Incomodei-o ainda outras vezes, o professor não Guimarães Rosa, pedindo para que tocasse violão, declamasse um poema ou, ainda, contasse como era o curso de Letras. O sorriso dele quando me ouviu dizer que eu também queria fazer Letras é o mesmo que aparece em mim quando ouço isso dos meus alunos. 

    Depois de alguns plot twist da minha vida, que envolveram uma mudança de cidade, um casamento e um semestre de tortura no curso de Análise de Sistemas, lá estava eu devidamente matriculada em Letras na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Dali em diante, resolvi aceitar que meu caminho era esse mesmo. Entrei na área de pesquisa, fiz mestrado e agora, no doutorado, continuo apaixonada pela literatura. Além de leitora, no entanto, também me arrisco na escrita, sempre com muito pudor, muito cuidado e muita insegurança já que, num mundo em que existem Clarices e Machados, é difícil entrar na seara dos escritores. Possivelmente esse seja um dos motivos pelos quais só publiquei meu primeiro livro de contos quase aos trinta anos, embora escreva a sério há pelo menos dez anos. 

    Durante minha formação como leitora passei pela fase do Harry Potter, depois por Stephen King e só então entrei nos clássicos. Embora ouça muita gente recriminando leitores de bestsellers, eu jamais abandonei esses livros (e sim, eu li Crepúsculo também). Acho que desde que você se divirta e não os leve muito a sério – afinal, foi para isso que eles foram concebidos: entretenimento – não há nada de mais nisso. Não sei dizer se existe uma ordem necessariamente de se ler primeiro livros populares para depois encarar os grandalhões da literatura mundial, embora muitos gostem de dizer isso. Acho que o importante mesmo é que a pessoa seja um leitor competente independentemente do que está lendo. Por isso não tenho preferência por um gênero específico. Comigo acontece assim: busco na estante ou no kindle (que é meu mais novo melhor amigo) um livro que chame a minha atenção. Por vezes, leio as primeiras linhas para ver se serei mesmo fisgada pela história ou não e aí decido se continuo. Não tenho pudores em abandonar um livro pela metade – já os tive outrora, mas perdi a vergonha (disso que fique bem claro) – e também não tenho receio de pegar um livro de autor desconhecido – tive ótimas surpresas, inclusive. Outras vezes acontece de me surgir uma vontade de ler algo específico, por exemplo: quero ler a história que me comova, que me cause repulsa, que me deixe sem sono com vontade de terminar logo o livro, quero uma personagem central feminina bem humana com falhas e qualidades, e, de preferência, quero que tenha sido escrita por uma mulher. Bem, acontece de eu achar o livro que desejo. E acontece também de não achar. Nesses casos, vale o conselho da autora estadunidense Toni Morrison: “If there’s a book that you want to read but it hasn’t been written yet, then you must write it”. 


O Clube: Que leitura você indicaria para nossos estudantes? 

Jeanine: Ultimamente tenho lido tudo o que encontro da autora italiana Elena Ferrante. Comecei com a tetralogia napolitana há alguns anos e, devo dizer, ela tem histórias muito fortes, um estilo de escrita pungente que, por vezes, incomoda bastante (o que é muito bom, podem acreditar em mim). Suas personagens, cheguei a essa conclusão depois de ter lido seus outros 3 livros publicados, são sempre mulheres cujas falhas são tão bem desenhadas que nos comovem. Assim, para quem quer começar no universo ficcional de Ferrante, sugiro a leitura de “A amiga genial” e, se lhe apetecer a história de Lenu e Lina, seguir adiante com “História do novo sobrenome”, “História de quem foge e de quem fica” e, por fim, “História da menina perdida”. 

    Os outros três livros de Ferrante cuja leitura também indico são “Dias de abandono”, “A filha perdida” e “Um amor incômodo”, que comecei ontem, mas já digo que vale a pena ler. A misteriosa autora italiana mantém certa uniformidade nos temas e personagens de suas histórias. Por exemplo, todos os livros são narrados em primeira pessoa, embora isso seja apenas a aparência de uma semelhança, já que as personagens que conduzem as histórias são tão diferentes entre si que a uniformidade termina aí mesmo. Outro aspecto que se repete é a relação entre mãe e filha, cujas agruras e sofrimentos são expostos de maneira dolorosa para o leitor: é a mulher que deixa tudo para ser mãe e, depois de ser sugada até os ossos pelos filhos, descobre que aquilo não é suficiente; são as filhas que fogem a qualquer custo das próprias mães que querem tirar a força de dentro de si tudo o que vem delas para então descobrir que isso é impossível. 

    Ã‰ preciso ter estômago para ler Ferrante. Apesar de ser uma autora bestseller, não são histórias para entretenimento (apenas). Ela tira o leitor do lugar, deixa-o desconfortável, despe-o de todas as ilusões que lhe dão segurança. Por isso, caro leitor, cara leitora, concordo com o filósofo Jean-Paul Sartre quando ele diz que ler é um ato de generosidade, no entanto, ouso acrescentar que, acima de tudo, ler é um ato de coragem. 


O Clube: Poderia deixar uma mensagem para nossos leitores? 

Jeanine: Sejam corajosos: leiam.


Comentários

  1. Jeanine escreve tão bem que até as respostas dela são contos! E eu estou morreeeendo de vontade de ler Elena Ferrante!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário